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DRUMMOND E O TEMPO

O que mais impressiona em toda a poesia de Drummond é a sua maravilhosa capacidade de ser contemporâneo. Não apenas porque viu mais e melhor. Mas porque não ignorava as razões do tempo – com seu irrefragável sentimento da história. Como Bandeira e Cabral não puderam e não quiseram jamais negar o processo em suas razões profundas, Drummond também soube, de modo absolutamente solitário, elaborar uma fina película, quase invisível, entre a história e a poesia, mas com uma leveza, que se poderia esperar somente de um elevado gênio poético:

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave? ( ... )

(Procura da Poesia)

A história respira na pele das palavras, nas entrelinhas, não como causa e efeito mecânico, mas como multicausação, sem espelhos ou reflexos de estruturas, ou diversas tópicas sociais. E é exatamente por causa dessa marca histórica que a obra de Drummond alcança – como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou Murilo Mendes – um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo da história, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas ideológicas, ou prospectivas. A obra de Drummond repousa não mais na sua modernidade, mas na sua contemporaneidade (tanto em 2001 como em 2100). Esse aparente paradoxo aparece luminoso em sua Cosmovisão:

 

Eternidade:

os morituros te saúdam.
Valeu a pena farejar-te
na traça dos livros
e nos chamados instantes inesquecíveis.

 

Agônico
em êxtase
em pânico
em paz
o mundo-de-cada-um dilata-se até as lindes
do acabamento perfeito.

 

Eternidade:
existe a palavra,
deixa-se possuir, na treva tensa.
Incomunicável
o que deciframos de ti
e nem a nós mesmos confessamos.
Teu sorriso não era de fraude.
Não cintilas como é costume dos astros.
Não és responsável pelo que bordam em tua corola
os passageiros da presiganga ( ...)

(Discurso)

 

O século XX corre inteiro em suas páginas, como um rio profundo, caudaloso, inarrestável, com suas ondas de enigma e transparência, fogo e palavra, promessa e desencanto. Nessas águas de absoluta clareza, reflete-se uma parte de nosso rosto, quando não o rosto por completo. Daqui surgiram nomes de tantos brasileiros, como os de Luís Maurício, Pedro e Francisco, e não sei quantos títulos de livros, bilhetes e cartas de amor, e possibilidades de fazer poesia e música, porque nos vemos instantaneamente nessas águas da poesia drummondiana. Já nos apossamos, por usucapião, de uma pequena parte da gleba drummondiana, de um braço de rio. Assim, pois, em pleno desespero, ou quase, lembramos de José; quando não somos correspondidos no amor, recorremos à “Quadrilha”; se enfrentamos um obstáculo, a imagem mais eficaz de que dispomos é a “pedra no meio do caminho”; e se o mundo e o coração andam descompassados, socorre-nos a rima com Raimundo, e todas as plausíveis soluções. Boa parte de nossa forma de sofrer o mundo já se tornou drummondiana. Dessas águas e terras não podemos prescindir:

 

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor (...)

(Sentimento do Mundo)

 

Sua obra guarda um século XX universal, mas com a força de um modo brasileiro, como foram os modos de um Portinari, de um Gilberto Freire, de um Villa-Lobos, ou de um Guimarães Rosa. Um Brasil cosmopolita, do modernismo ao pós, dentre muitas estéticas, acima das quais Drummond sobrenada. Um Brasil profundo, com sua paisagem de matas e solidões, que Mário de Andrade ia descobrindo em viagens e aparências. Um Brasil linguístico, com novas regências, neologismos oportunos, conjugações inesperadas. Todas as línguas do Brasil. A história percorre os poemas de Drummond, de Itabira ao Rio, do Brasil ao Mundo:

 

Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,
era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravata mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,
era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso, dispersos no tempo,
viesse a recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas sobcolor de poema (...)

(Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin)

 

Essa alta poesia toca graves altitudes, que começam e terminam no quotidiano, mas com uns laivos de verdade absoluta ou de absoluto desespero, que o levam da imanência para uma frágil e perene transimanência. E aquelas altitudes parecem originar-se de um ritmo inconfundível, como o que desponta, grandioso, em “A máquina do mundo”, com uma forma de dizer as coisas, entre abismo e vertigem. E não tenho dúvidas de que esse é um dos maiores poemas da língua portuguesa, porque sussurrado junto ao abismo, atravessado por um sopro genesíaco e misterioso. E não só. Mas com uma pietas realmente nova, de quem já havia tratado do desconcerto do mundo ou de seu perene desassossego, atingindo altíssimos patamares de significação:

 

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e as aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

 

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

 

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

 

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

 

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

 

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto dos mistérios, nos abismos. (...)

(A Máquina do Mundo)

O sentimento do mundo e o sentimento da história se entrelaçam, afinal, na grande piedade cósmica, que atravessa boa parte de nossa poesia, cujo centro é Manuel Bandeira, desde Cinza das horas até os últimos poemas. Uma solidariedade profunda, que corre em Murilo e Jorge de Lima, e em tantos versos de Cabral e Gullar. Uma compaixão visceral pelos bois e pelos meninos carvoeiros, pelo artista de circo e pela infância, por Severina e por Fulana, pela franja de escuridão que toca o âmago das coisas. O sentimento do mundo e da história desaguam numa vasta perspectiva universal. E Drummond traduziu essa incógnita. Na carne. Na medula. Na essência. O mais maravilhoso e último dos poetas contemporâneos:

Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva


pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

 

que se entrelaça no meu próprio choro,
e compomos os dois um vasto coro. (...)

(Relógio do Rosário)

 

Fonte: A memória de Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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