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ASTÚCIAS DE CLIO

A História não se repete, não tem sósias, nem se dispõe a um eterno
retorno, projetada em dimensões binárias. A História não guarda tesouros
latentes à espera de um resgate unívoco.
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A História sem imaginação da alteridade não é História, mas um estéril
contraponto que interage apenas com fantasmas.

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Como disse Collingwood, a imaginação histórica não é ornamental, mas
estrutural. Em outras palavras, a imaginação histórica cria um sistema,
um plano articulado.

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Trata-se de imaginação ativa, presa a uma hierarquia de fatos, a uma
pluridiversidade causal, centrada numa dinâmica da memória.

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A imaginação não se reduz a um plantel idealista, digamos, do apriorismo
às ideias inatas. Se a imaginação tem lugar na lógica e na matemática,
quanto mais na ideia de História, igualmente revista por um intenso
processo de autocrítica e diálogo das fontes.
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É forçoso recuperar Dilthey, no foco do entendimento e da imaginação,
segundo a vivência subjetiva de quem escreve a História (Erlebnis), para
além dos documentos e de uma visada heurística.

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Aqui também a defesa de Vico de uma ciência nova, cuja certeza depende
da profunda repercussão interna, coincidência entre sujeito e objeto, na
História, demasiadamente humana.
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Carta de Burckhardt a Karl Fresenius, 19 de junho de 1842: “A História é
poesia em escala mais ampla”.

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A poética da História e a tentação do descontínuo: campo incessante de
guerra.

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A História dos conceitos, mas sem abstração radical. Sem a imago
poética, não se movem os moinhos da História nem a pluralidade dos
tempos.

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A História não se limita a um cardume, levado pelas correntes marinhas,
preso numa rede conceitual. A História depende dos nós da rede, não
pelo que apanham, mas pelo que deixam passar, em correntezas
transitivas.

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Uma entrega ao campo de visão, a escolha de um ângulo não
perpendicular a um dado processo, como quem busca, derrotado, libertar-
se da força gravitacional do tempo. Eis a tarefa.

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Como recortar o corpus, senão começando pela História dos conceitos,
para alvejar uma poética do passado, abrigá-la, incerta, mas verossímil,
sem a ilusão de um tipo ideal, definido e transcendente?

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O historiador não assina um pacto de sangue com o determinismo. A
teleologia é um veneno astucioso. Como disse Huizinga, deve-se ter a
ideia de quanto podia ter sido, mas não foi. Napoleão triunfando em
Waterloo. Ou a fundação do Terceiro Reinado no Brasil. A História é o
cruzamento dos possíveis, zona escura entre potência e ato, semovente,
imaginária, para não asfixiar o recorte sincrônico nas poderosas fauces da
entropia.

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Construir a hipótese do objeto para subjetivá-lo. Logo depois dissolvê-lo,
num marcante processo de decantação para finalmente, depurado e novo,
objetivá-lo.

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Sujeito e objeto não se sustentam numa oposição dramática. Uma
incursão de subjetividades, a descoberta especular de um conteúdo
crescente, de um contínuo insolúvel, que os afasta e aproxima.

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Uma poética da síntese, incontida, indomável, a História: rio caudaloso,
sob a leitura geológica, fractal expansivo, sem escala, todavia, cujo início
e fim são determinados por uma forma de imaginar o algoritmo.

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Não existe naufrágio e nem sequer sobrevivência, fato remanescente,
exorbitado, que não componha um quadro complexo multicausal, ainda
que por força de contradição e resiliência.
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Fazer e sofrer a História: entre a autoconsciência hegeliana e a
epistemologia de Vico. Também a herança de Marx, desde a última tese
contra Feuerbach.

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A filosofia da História como autoconsciência do processo acaba de perder
seu prestígio. Não cessam, contudo, as derivas hegelianas, ciência dos
fins, às vezes mais sutil, quando não esgarçada, que, de repente, se
desvela como causa final, redentora, quebrando as potências da dialética.

*

A espiral de Vico é a parte menos relevante da obra, como quem discute
apenas o mármore de Bernini. Mesmo assim, a espiral não se limita a um
conjunto de virtude ascensional. Ao definir a dialética de fluxo e refluxo,

o gradiente de Vico rompe com a ideia, a ele estranha, e posterior, de um
progresso inexorável, segundo a retilínea e tripartite dimensão positivista.

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Passar da reta para a esfera, de Marx para Sloterdijk, implica deixar
portas abertas à reinvenção de uma nova topologia da História, entre
espuma e precisão.

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Desafios maiores: a produção de sentido e a solução de continuidade. Um
esboço de hermenêutica da suspeita.
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A marcha do tempo, segundo o marxismo vulgar, mal se distingue de
uma decadente cartomancia, mais otimista, decerto, e sem honorários.

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O motor da História entre sonho e sangue. Polifonia dissonante. O caos
em busca de um leitor a posteriori. Demiurgo do sentido?

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A História desautoriza alfa e ômega. Lança um marco temporal no corte
previamente deslocado em malhas causais, cuja espessura inspira um
sistema relativo que revisa a cada passo o status quaestionis.

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Não dispor de armas conceituais significa exercer a mais ingênua leitura
da História, sem esconjurar o demônio da teleologia, constante nas
ciências temporais. É preciso calibrar vantagens e desvantagens de quem
conhece o fim do processo.

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Nietzsche e Vico coincidem no salto da filologia para a filosofia. A
erudição na História é condição necessária, mas insuficiente. É preciso
sair da crônica para uma dinâmica de aporias, centro de puro dinamismo,
que não se consome numa seção de achados e perdidos. A passagem da

filologia para um conhecimento capaz de transcendê-la: início da
elaboração de uma ideia de História.
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Não se pode reificar o passado. Ele passa a existir enquanto o
interrogamos e intentamos sua reconstrução a posteriori. Torna-se
impraticável uma ontologia do passado, como quem atravessa um buraco
de minhoca, ou como quem volta de uma estranha viagem, na máquina
do tempo de H.G. Wells.

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A História tem início como um sopro criativo. Antes disso, tudo é amorfo
e instável, conjunto disperso de injunções, disjecta membra, como a noite
da Teogonia de Hesíodo.

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Parte da filosofia da História é um desserviço à defesa do infinito e ao
sopro da extrema alteridade.

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Ela aprisiona a História, torna-se entendimento a priori, sabe antes de
acontecer, usa uma chave universal, sequestra o curso do devir, dissolve
todos os possíveis, aposta numa equação unívoca e devastadora.

*

O marxismo vulgar e o positivismo de baixa estatura servem-se da
História como um corpo morto. Perfazem o sonho de Spengler: a
previsão dos eventos, no corpo atomístico da História, sobre cujos
despojos se alimentam como abutres.
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Alguém disse que o sujeito é singular e o predicado, universal. Não raro o
sujeito ganha foros de universalidade e o predicado se reduz a uma cega
forma singular.

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Para Hempel, basta acionar uma formulação, segundo a qual: L = lei
geral, C = enunciado das condições iniciais; E = descrição do fenômeno
a ser explicado:

C 1 , C 2  . . . C n
L 1 , L 2  . . . L n ,
__________
E
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E, no entanto, uma tentação subjetiva poderia levar a revisar o esquema
de Hempel, adicionando um pequeno “s”, denunciando o valor subjetivo
da construção da História:

Cs 1 , Cs 2  . . . Cs n
Ls 1 , Ls 2  . . . Ls n ,
__________
Es
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Em Hegel: “Se a liberdade é inconcebível, temos que criar conceitos
inconcebíveis”. Não tanto a dimensão trágica, mas o motor da dialética,
sem a dissolução da tese numa síntese pantagruélica sem memória.
Talvez a paralaxe de Žižek, quando e se ultimada, em vez da Aufhebung.

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Ninguém se iluda em atingir a schöne Totalität, a bela totalidade, quando
o motor da História sabota as próprias engrenagens.

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Não é pequeno desafio determinar quando o devir se transforma em
História, mediante operações lógicas e sensíveis para atingir esse ponto
crucial.

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O historicismo como má-consciência da história ou salvaguarda de um
work in progress?

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Naufragou o sujeito transcendental a priori. Renasce como ser histórico
num dado horizonte temporal. Passamos de Hegel a Kant.

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Todo o realismo na História perde sua razão de ser. O fantasma da coisa
em si e os estertores objetais.
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A História não é filha do historicismo, e no entanto, é preciso
fundamentar um baricentro que distribua a pressão de reescrevê-la, sem
cair no vazio, na submissão do mais puro relativismo.

*

A expansão contínua do círculo hermenêutico. Um gênio maligno sobre
as relações delicadas entre sujeito e predicado, como quem segue em alto
mar, buscando um porto.

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Em tuas mãos, Clio, a dedução das partes, a sede da totalidade, a
expressão do afresco.

Fonte: Paisagem Lunar, Tesseractum, São Paulo, 2023.

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